sábado, 9 de maio de 2009

Descalço



O homem desaprendeu a andar descalço.
Se prendeu a seus calçados,
Se perdeu em seus passos
pela vida de caminhos incertos.

O homem se caracteriza por seus calçados.
Se entrega por seu jeito de andar,
Se perde ao andar descalço,

por sentir o mundo frio e real
do qual tenta se isolar.

sábado, 2 de maio de 2009

A Estufa

Foi no ano de 68 em que eu reparei pela primeira vez naquela estufa. Era de uma grande casa de uma das poucas famílias ricas da cidade. Gigantesca, majestosa, bem cuidada.
Nossa casa era acima desta na rua. Meu passatempo: observar.
A dona mantinha as mais raras espécies de plantas; mantinha os serviçais a limpar e lustrar os vidros; mantinha o dia da semana - quinta feira - para o chá.
Nestes dias, as mesas adornadas em ferro pesado eram decoradas com toalhas bem bordadas e comidas requintadas. As senhoras em seus trajes exuberantes - plumas, sedas, peles, pérolas, pedras - ocupavam as cadeiras por inteiro. Gesticulavam nervosamente suas mãos de unhas arredondadas e luvas aveludadas, mexiam compulsivamente seus chapéus coloridos: uma dança de salão.
O marido da dona volta e meia conseguia se exibir mostrando uma novidade. Fosse um bicho preguiça para as altas árvores, fosse uma coleção de borboletas vivas, ou contando sobre uma nova viagem exótica planejada.
A casa tinha outras peculiaridades como os cachorros europeus no jardim de fora ou o grande carro que eles usavam, que me lembrava uma banheira marrom. Também a grande movimentação no decorrer dos dias era sempre fantástica. O leiteiro e a entrega de pães todas as manhãs. Os empregados a preparar grandes almoços e a arrumar os quartos. No andar de cima as janelas à exporem as cortinas floridas ao sol, a exibirem a luz dos abajures à noite.
Em épocas de festas o carteiro trazia sempre embrulhos e cartas. Visitas nunca paravam.
Mas a cidade tampouco parou. O tempo passou muito rápido. Tudo mudou. Eu observei aquela casa por mais de vinte anos.
Um dia eu me mudei para a região central. E minha antiga rua da infância se tornou um lugar longe de tudo. Tive três apartamentos diferentes. treze namoros diferentes - sérios. quatro reclamações de vizinhos idosos. Um gato suicida. Um peixe mal humorado. Amigos drogados. Amigos artistas. Amigos artistas que se drogavam. Enfim, muitos amigos. muitas pessoas.
Mudei de gosto várias vezes. Mudei de idéias um bilhão de vezes. Tive um filho. Me separei.
Terminei uma pós graduação. Melhorei na carreira.
Num sábado meu filho esqueceu a mochila comigo. Uma mochila amarela. Não teria motivo para eu mexer na mala dele. O que eu encontrasse poderia complicar tudo. nossa relação nunca fora fácil de qualquer jeito.
Mas aconteceu. o zíper estava entreaberto. Puxei o caderno dele para fora e folheei com carinho. Me senti menor. Me senti a conhecer o mundo novamente... Pouco a pouco a descobrir as coisas.
Poesias, recortes de figuras, colagens de notícias. Anotações, contos, recados, declarações, papel de bala. Desenhos e listas, desde compras à melhores leituras. E no meio deste mundo da cabeça do menino, parei numa página em especial. No cabeçalho apenas dizia: A Estufa.
Hoje eu saí sozinho... Quis esvaziar a cabeça. Não entendo bem o que passa comigo para ser assim irritado. Mas me disseram que seria bom se eu escrevesse aqui, assim minhas idéias se formam melhor, eu consigo organizar tudo de uma vez. Me acalmar.
Mas meu objetivo hoje não era escrever. Queria saber aonde era a casa do Vô Anísio. A família toda veio com este assunto a duas semanas atrás quando ele faleceu. E eu fiquei curioso e em meio a minhas loucuras mentais me senti chamado até aqui. Tentado. Tentado é melhor. Sim eu encontrei a casa. Ela virou um bar. É ainda o grande casarão branco de jardim extenso, mas é um bar.
E ao lado tem esse terreno aonde entrei e estou, encostado nos escombros de um muro velho. Não sou vândalo nem nada e falando assim só pareço comprovar minhas loucuras. Apenas me perdi a olhar para uma construção de vidro, uma estufa velha neste terreno. É gigantesca e esta com muitos vidros faltando. O ferro da construção é verde de limo ou laranja de ferrugem. Dentro as plantas dominam selvagens como nunca. Nenhuma chance de saber se há algo ali dentro. Além de tudo os vidros que mostrariam algo estão borrados em musgo e foligem da poluição, com marcas escorridas de chuva.
E lá fora já pregaram uma placa com a data marcada para a demolição e limpeza do terreno. Chuto entre um novo prédio, loja de colchões, farmácia ou concessionária...
E após terminar ler meu coração batia rápido. Foi estranho e inesperado. E me fez ver que eu devia falar mais com meu filho. Contar mais minhas histórias. Falar mais sobre a vida! Nossa relação de família foi como a estufa e o tempo: Glamorosa no início, ainda quando meu filho era pequeno. E agora frágil e esquecida, mesmo que ainda guarde sua essência em lascas...
E tão trabalhoso quanto podar um grande jardim será para eu melhorar as coisas.

Sentir

Pude tê-la levemente em meus braços.
E passei a abraçá-la sentindo como a tempos não sentia por ninguém mais.
As batidas dos corações... Incertos.
Num silêncio nosso apenas as respirações se manifestavam.

O encaixe bom de nossos corpos desconhecidos.
As mãos trilhando caminhos leves.
Meu dedilhar em seus cabelos,
os fios fortes e lisos.
Fios que pareciam até então intocados.

Poder observar calmamente seus detalhes,
olhar com profundidade.
Ter medo sem pensar.
Não querer pensar.

Meu dedilhar em sua face delicada.
A perfeição de sua penugem.
Sentir por você como a tempos não sentia por ninguém.
Um querer cada vez mais forte e decidido.
O medo bom desta incerteza.

(p.S.m)